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Canções meninas

Canções meninas, 2019, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Posfácio de Isabel Mendes Ferreira. Ilustrações de Yolanda Ianelli Fernandez.

Sem falar de infâncias feridas ou sequestradas, nelas penso quando vejo uma inocência que ainda pode existir, se deixarmos de estar aí para colonizá-la. Se deixarmos as crianças serem crianças. Se recuarmos nossas pretensas sabedorias e ridículos comandos, para que fale alto esse outro mundo, que não é nosso, embora, com sorte, possa nos ser próximo. Para que cante esse paraíso de anjos implacáveis, que, em suas respostas não verbais ao que nós somos, apenas nos devolvem seus olhos, e neles, gritante, lúcido, o espelho das nossas imagens.

As alegrias roubadas cedo, brilhassem como merecem, haveriam de juntar-se a essas canções. Nesse país sem muros de meninos e meninas, somos nós que devemos guardar silêncio, ouvir, observar. O começo de um poema está ali, no existir dessas crianças, em suas fantásticas analogias, no rebentar instantâneo da alegria por coisas tão pequenas, que de repente assumem as dimensões de um mundo novo. Inalienável mundo, insubornável mundo, onde as palavras ainda precisam ser descobertas, pois vive-se antes de outras (muitas) linguagens.

Nesse lugar, que ainda pode se abrir em qualquer parte, se assim nós permitirmos, nessa idade que refresca tudo o que toca, não vale a lei dos homens. Aí respira uma inocência como uma segunda chance que nos foi dada. Terceira chance, quarta chance, e como nós respondemos a essa oferta? Correspondemos alguma vez a essa dádiva?

M.I.



Uma inocência veio viver comigo e não é minha,
Rainha dos cataventos vivos antes da chuva
Amiga dos brotos de hibisco, amiga das pedras
Amiga dos gatos pretos que vivem nos muros,
Esse olá para tudo veio viver comigo e não é meu,
Esse dedo apontado para a lua, esse dedo apontado
Para tudo que é da messe do amor. Eu cuido.

capa manuscrito

Manuscrito do fogo

Manuscrito do fogo (antologia poética), 2019, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Texto de apresentação de Peron Rios.


FAZER FOGO

Que sei eu da tua vida feita de milhões de instantes?
De tuas monstruosidades, tuas taras, teus dramas?
Que sei eu dos teus contrabandos no caminho até agora?
Se nem sei teu nome e as palavras de um pós-guerra
São como pedras que precisamos atritar para dar fogo…
Não é mau que o cenário seja pobre e antes uma questão
De sobrevivência fazer fogo: isso aproxima estranhos, dispensa
Cerimônia, protela a discórdia e nos chama a certos gestos
De linguagem universal, rosto de dor, corpo com sono, sede,
Medo, fome, e então se tocam a tua loucura, a minha sanha,
O meu desejo e o teu desejo, acordados, então queimamos,
E queimamos bem, como se assim fizéssemos juntos a vida toda.

Capa rosto Tempo de voltar_

Tempo de voltar

Tempo de voltar, 2016, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Texto de orelha de Maria Lúcia Dal Farra e prefácio de Marco Lucchesi. Finalista do prêmio Jabuti 2017.


Mariana tem compromisso com a terra e o centro, um regressus ad uterum, ao elemento primordial, onde não há fronteira entre o sono e a vigília. Porque no princípio era a música: dentro dela nos movemos, agimos e estamos.  E a volta não acaba. Processo que se abisma em suas entranhas, assim como a bela poesia de Mariana, igualmente abismada: água clara de poço profundo, clara e fresca. O lençol freático de sua poesia nos dessedenta, inesgotável. Comove. E arrebata.

Marco Lucchesi


ISMAEL

Todas essas terras disputadas,
uma vida de alcateia e de cobiça –
mas nem todos nós temos essa fome.
Alguém tem apenas o deserto
de uma história que nunca foi escrita,
a saga sem metáfora de glória
de ciganos tão antigos quanto estrelas –
ao menos um de nós é o outro filho,
o andarilho irmão que foi banido,
e outra vida vem do fundo de um poço,
uma flecha cruza um mundo sem divisas.

capa o amor e depois

O amor e depois

O amor e depois, 2012, ed. Iluminuras, São Paulo. Texto de orelha de Adriana Lisboa e posfácio de Contador Borges. Semifinalista do prêmio Portugal Telecom de Literatura 2013 (poesia), finalista do prêmio Jabuti (poesia) 2013.

Conheci a poesia de Mariana Ianelli através de seu livro Fazer silêncio, cujo título já de saída me conquistou: essa exortação, num mundo extrovertido, um mundo compulsivamente loquaz e de ruído em excesso, parece mais do que atrevida: é revolucionária, talvez. Será possível, então, uma espécie de escrita silenciosa? Esta jovem poeta de mão segura confirma que sim. O silêncio está muitas vezes atrelado a uma frequência íntima de reflexão, de contemplação, de espera e temperança, qualidades que encontrei na poesia de Mariana. Uma poesia que não sobra, que não vaza, nem mesmo quando deslumbra.

Na primeira oportunidade me lancei a seus outros livros já publicados, até ter o privilégio de ler os originais de O amor e depois. Encontrei aqui o mesmo cuidado com as palavras que, como disse Jair Ferreira dos Santos, “é severo, mas não exclui, antes reforça a espontaneidade.” Uma “dicção ao mesmo tempo culta, comovente e perturbadora,” como quis ainda Antonio Carlos Secchin.

A língua é companheira de Mariana, é um instrumento que ela usa com a habilidade dos mestres. E como todo mestre, ela renova sua arte. Seus versos, que passam longe do exibicionismo formal e são antes o peneirar do ouro no rio, trazem imagens como o halo de majestade / dos tigres à beira da extinção, no belíssimo Tigres brancos, ou confirmam: O amor, até o amor existe, / Um lunático mendicante que vadia pela terra / À espera de outra chance (Miragem).

Mas ela é uma artesã cuja poesia nunca revela a costura. O domínio incomum que Mariana tem da escrita nos faz acreditar que, afinal, não há esforço no esforço que seguramente empenhou ali. E o tempo todo sua poesia silenciosa, mas possante como poucas na cena contemporânea exorta que nossos olhos estejam vivos e curiosos (…) / E olhem para dentro alguma vez / E o que vejam / Seja alguma força de sequóia / Presa à terra desde o império de outros tempos (Os teus olhos).

Estaremos à altura da tarefa? Aí está o desafio lançado por Mariana Ianelli. A satisfação que foi para mim a descoberta de sua obra, há alguns anos, vem agora se aliar à alegria de reencontrá-la neste O amor e depois, sempre surpreendente, e absoluta senhora do seu ofício.

Não me restam dúvidas de que estes versos vazados pela temática do amor (e do seu fim, e do que vem depois) – mas não apenas isto – exigem que eu seja uma leitora competente, de olhos e ouvidos atentos. Mas só tenho a ganhar com isso.

Pois, como lembra o poeta e editor americano Christian Wiman, acercamo-nos da poesia “para poder habitar de modo mais completo nossas vidas e o mundo em que as vivemos – e para que, sendo capazes de habitá-los mais integralmente, sejamos talvez menos aptos a destruí-los”.

Adriana Lisboa



O AMOR E DEPOIS

Era esperado que aos poucos
Definhasse, fosse desaparecendo
Naturalmente levado pelo sono.
Era suposto que por abandono
Morresse –
E não teria o vento nenhum sentido
De ventura, seria apenas
A passagem de uma hora branca,
Entre outras tantas,
Para um coração manso
Que já nada espera nem recorda –
Como se o tempo não devorasse
Também o desconsolo
E dele fizesse exsudar um leve perfume,
Como se não arrastasse
Cada corpo uma penumbra,
Como se fosse possível
Em vida a paz dos mortos.

Treva Alvorada_Capa

Treva alvorada

Treva alvorada, 2010, ed. Iluminuras, São Paulo. Texto de apresentação de Jair Ferreira dos Santos. Menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas 2011 (Cuba).


Mariana Ianelli escreve, basicamente, uma poesia do primordial: a solidão primeira, o jardim sem outono, aquele tempo intransitivo fora do mercadomas perene em todos nós.  Nos livros anteriores, como neste admirável Treva Alvorada, os versos parecem nascer em algum ponto da imaginação literária onde o lirismo se entrelaça ao mito, à religião, à filosofia para aludir a experiências originárias com significados há muito abolidos ou empalidecidos pela vida moderna.

Já no título defrontamos a mais primitiva das oposições míticas – noite/dia, com expansão metafórica para morte/renascimento, alienação/consciência – e essa ambiguidade atravessa o texto sob figuras diversas. É assim que reencontramos, em épocas e geografias indefinidas, Narciso, Abel, cenários antigos e passagens bíblicas, cada um deles envolvido com dilemas ou esperanças cujo drama, em roupagem inédita, revivemos. A deserção, por exemplo, do filho pródigo, com sua “pele macia/ sem rastro de batalha”, vem precisamente de que “não sabia errar”. Pelo equívoco, ele ascende à humildade, para enfim retornar à casa paterna.

A errância humana entre sombra e luz, aliás, é o tema da coletânea. Estamos entregues à inquietude, ao desconhecimento, tendo a morte por horizonte. Esse aparente pessimismo, no entanto, é para Mariana um domínio de luta com sentimentos e gestos  justamente primordiais como a compaixão, o silêncio, as alegrias do corpo ou a aliança com o absolutamente Outro, também conhecida por fé. Na vitória ou na derrota, palmilhamos a “revanche da galhardia”, pela qual “é inútil desafiar o pó/ E, contudo, desafia-se”.  Ou então, quando alcançamos a “paz dos contrários”, reina a “Treva alvorada”, onde “Fecundado, flutuas,/ É a lei da graça.” 

Narrativos, portanto mais ágeis, os poemas provocam por algum mistério uma impressão de leveza e profundidade. O cuidado com as palavras é severo mas não exclui, antes reforça, a espontaneidade. Os tons variam do lamento ao cântico, conforme a emoção em jogo. E à potência de reflexão lírica da autora, que percebe coisas assim: “Era um frescor de água profunda/ A tentação do esquecimento”, vêm se associar imagens reveladoras de um universo em contínua radiância, como no verso “A maçã resplandecente no esterco”. Tudo somado, temos a síntese de uma originalidade feita pensamento poético em sua mais forte expressão. 

Escrito em 2009 durante os meses de enfermidade e passagem do avô da poeta, o pintor Arcangelo Ianelli, Treva Alvorada contém meditações ora pungentes, ora libertárias sobre a morte. São lições de finitude que pertencem à sua decisão, ultracorajosa face à estética contemporânea, de dialogar poeticamente com o sagrado, que vai deixando este mundo seduzido pela própria desintegração. Curiosamente, contra toda a aprendizagem, o último poema termina com a boutade: “Aqui não se morre mais.” Legítima ironia, mas ainda primordial, é no homem o desejo de imortalidade. 

Jair Ferreira dos Santos



Absurda leveza que te faz afundar        
E não é a morte.
Cumpres tua descida calado
(Uma palavra por descuido
Seria amputar a verdade).
Náufrago do tempo,
Tuas horas transbordam.
Dentro da lágrima,
Imensidão, já não choras.
Estrelas e estrelas,
Copulam a sede e o engenho
De que te alimentas
Como nunca te alimentou
O gosto da carne.
Tua face atônita
Se existisse uma face,
Tuas costas nuas, 
Se a nudez fosse do corpo.
Um sorvedouro
Onde a paz dos contrários,
Treva alvorada.
Fecundado, flutuas.
É a lei da graça.

Almádena

Almádena

Almádena, 2007, ed. Iluminuras, São Paulo. Textos de orelha de Marco Lucchesi e Antonio Carlos Secchin. Finalista do prêmio Jabuti (poesia) 2008.


Mariana Ianelli — em seu frescor de sombras e quedas de água, ligeiras desesperações, vozes líquidas, quase serenas, na solfa dos pássaros, no canto de Salomão e sobretudo na ferida noturna e grave de João da Cruz — atinge uma altitude inconteste. Poesia de uma riqueza de uma densidade, de uma sutilíssima percepção das coisas que nos cercam.

Almádena é uma espécie de consciência vigilante, torre alta e bem plantada, frente ao lirismo em que mergulha e do qual emerge com rigoroso espanto. A torre do Padre Vieira, do Sermão do espelho e do Demônio Mudo. O severo. O contido. E as mirabilia. Mariana mede a palmos certos as formas de língua, o ritmo e a força das imagens nos mares do texto.

Nessa torre de vertigem e liberdade, vejo o início de uma etapa, em que Mariana terá de se haver com os limites do silêncio, assim como Vieira, quando converte Deus para Deus — no Sermão do Bom-Sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda. Mariana não quer pouco. E sente o risco desse jogo de rara beleza.

Mas é outra a máquina de guerra, tal como Holanda e Portugal são outros, e agasalham nomes e destinos vários.

Almádena é o marco de suas novas terras. Descobertas não faz muito. E que urge conquistar com serena alegria e vivacíssimo risco. Frescor de sombras e quedas de água. Ligeiras desesperações. Vozes líquidas.

Marco Lucchesi


A poesia de Mariana Ianelli apresenta uma rara conjugação entre um registro discursivo de extração clássica e uma inquietação subjacente que tensiona o clássico e o desestabiliza por meio de alta voltagem metafórica.

Neste novo livro de uma produção que se consolida e se refina a cada obra, Mariana desdobra-se em doze faces ou segmentos que atravessam a dor, o desconsolo, o desejo e a morte, e seu apurado domínio técnico elabora uma dicção ao mesmo tempo culta, comovente e perturbadora.

À contracorrente do minimalismo, o fio discursivo de Mariana se distende em laboriosa reflexão sobre tudo aquilo que acena à superação da contingência, embora nela se abasteça. Um sopro cosmogônico perpassa a poesia de Almádena, com inflexões antirrealistas no vislumbre angustiado da dimensão do inacessível.

Como diz Mariana, no esplêndido poema que dá título ao livro, “Não há rumor nas coisas, / Elas são o que são. / Não desejam explicar-se. / A porcelana, a cambraia, a murta / E a falta de uma asa”. A poesia fala dessa falta. E empresta-nos a asa ausente para que, no sobrevoo lírico, acerquemo-nos perigosamente da matéria volátil e incandescente da vida.

 Antonio Carlos Secchin



A terra esplandece,
Consorte de quem parte.
Agora amanhece.
Eu me perdi, Almádena.

Fazer silêncio_2005

Fazer silêncio

Fazer silêncio, 2005, ed. Iluminuras, São Paulo. Texto de apresentação de José Castello. Finalista dos prêmios Jabuti (poesia) 2006 e Bravo! Prime de Cultura.


Mariana Ianelli produz silêncio no leitor. Um silêncio que é cumplicidade e empatia, a identificação de uma memória em comum.

A escritora refaz o passado com o refinamento de uma profecia, cria uma “arqueologia sagrada” de seus hábitos, desaloja verdades das aparências. Em sua poética singular e febril, cuidadosa e alentada, não há desperdício. Descobre o “rumor do oceano / no fundo de uma vasilha”.

Não existe propriamente o passado, o presente e o futuro, mas aparições, fulgurâncias de uma compreensão simultânea dos tempos. “Não há tempo que me fortaleça / Sem antes ter me derrubado.” Seu olhar é de cima, como do alto de uma árvore, dos telhados, das costas de um anjo. Ela ensina a arte de perdoar, entende as imperfeições que pesam, problematizam e enriquecem a vida. “De todas as paixões do mundo / Resta-nos o dom de saber perde-las. “Não condena o sofrimento com castigos, culpas e maldições. O sofrimento é sábio e transmuda-se na alegria do autoconhecimento. Não pune; abençoa com a partilha. Para cada aflição, indica uma receita curativa. Ao desespero, sugere “o consolo num copo de cidra”.

São poemas para a moldura da voz. Mariana tem uma vocação classicista para lapidar a dúvida em diamante. O adjetivo é bem colocado, os paradoxos são necessários e os versos se perfazem em paralelismos bíblicos. Persegue a justiça e o equilíbrio da forma. Assim como Sophia de Mello Andresen e Maria Teresa Horta, grandes autoras de Portugal, condensa o raro em instantes de deslumbramento, descarna o mínimo com acurada intensidade, ultrapassa a vagueza pelo simbólico e adere ao território mágico das evidências.

Se no outro lado “a eternidade é leve”, aqui, neste livro, a escrita ajuda a passagem da brasa ao cristal, do animal ao espírito, do prosaico ao sacro. Dificilmente a poeta fala por si, na primeira pessoa. Recusa a catarse existencialista ou os achaques domésticos, fala com os outros (nunca pelos outros), em conjugação coletiva. “Gozamos um amor tranquilo, sem heroísmo.” Sua mitopoética tem um andar místico e concentrado, a retirar visões sobrenaturais de banais conjunções dos fatos. “Vês aquela menina? / Alheio à sorte, não podes vê-la: / Falta-te o conhecimento do oculto: / Essa criança será tua mulher daqui a vinte anos.” Supera a indigência da força física a subir como perfumada fumaça dos círios e da flor oracular do fogo. Não são apenas poemas, são promessas de uma mulher que entendeu a solidão para conviver, que sonhou para contar, que viveu para não morrer a esmo.

 Fabrício Carpinejar, poeta



Seja o ar da montanha
Para o sono dos cordeiros.
Neve recém-caída,
Puríssimo grão de açúcar,
Duna sob a lua cheia.
Tal qual o fruto da terra
Que se dá a comer no sexto dia.
Jazida inexplorada,
Casa sem mobília,
Vácuo do não-dito,
Êxtase nunca interrompido.
Tal como o olho cego
Que percebe o invisível,
Gema de opalina.
Seja o restante, o indiviso.
Magma transmudado em cinza,
Fóssil na noite da cripta,
O vaivém milenar da água-viva,
Líquido momento de sentir
E estar sozinho.
Fazer silêncio.

Passagens_Capa

Passagens

Passagens, 2003, ed. Iluminuras, São Paulo. Texto de apresentação de Nelly Novaes Coelho.


Poeta da condição humana, Mariana Ianelli, neste Passagens, se faz testemunha lúcida/agónica do atual caos em que mergulhou a brilhante Civilização que herdamos da Tradição. A que criou o mundo belo e progressista de ontem, alicerçado em Verdades e Certezas absolutas e que, já esgotado em seus valores de base, se vê mergulhado em crise, sem que outros “absolutos” surjam para substituir os antigos e permitir que um novo equilíbrio seja alcançado no mundo. Em meio ao caos, só restou o Homem e sua voz de Poeta com a tarefa de renomear o mundo.

(…)

Passagens testemunha o apocalipse; dá voz ao homem- da-queda, “prisioneiro de si mesmo”, que “dança contra os sinais de pecado”, nele inscritos por Deus. Poesia essencialmente metafórica, a destas Passagens tem raízes bíblicas. Como a poeta diz na Introdução, ao descobrir no Antigo Testamento a “intensidade de um sofrimento humano nunca tão bem entoado como nas queixas de Jó”, nasceram os versos do “Enredo do Cão”, – poemas que abrem o volume. Neles se faz presente o “homem degradado” do nosso tempo-em-mutação, aquele que, como Jó, se viu despojado de sua dignidade humana e de tudo quanto construiu em sua vida de dedicação ao dever e de fé.

(…)

Réquiem pelo homem sitiado pela dor e pela morte, Passagens termina abrindo uma fresta para a luz:

“Não te aflijas: / Na entranha do rochedo que te prendeu / Foi inscrita a audácia do teu desafio, / Do espelho inerte que te recebeu / Uma fonte viva expediu a tua luz. / Que nunca se perca o esplendor da tua ascensão.”

Estará nascendo o homem, ser-feito-de-tempo?…

Nelly Novaes Coelho



Danço contra os sinais de pecado
Que Deus pôs em mim,
Numa violência de estranha beleza.
Se me canso, Ele ainda me atiça,
Se revido, Ele mais me golpeia.
Lhe respondo uma última vez
Com a chama das canções do Templo.
O semblante do meu desejo aventureiro
Sempre espera um visitante que não sei,
Alguém que surge e não fica,
Que me fascina e não me retém,
Aquele que diz “agora e não amanha”,
E habita o meu lado de dentro.
Constante, singular, astro do Inconsciente,
Deus não está no filho que fez.

Duas Chagas_Capa

Duas chagas

Duas chagas, 2001, ed. Iluminuras, São Paulo. Texto de orelha de José Mindlin.


Diante de um silêncio de mais de dois anos, que se seguiu a publicação de seu primeiro livro de poemas Trajetória de antes, poder-se-ia indagar se Mariana lanelli teria posto de lado a poesia. Puro engano. Com este novo livro ela se mostra cada vez mais envolvida por um instigante e provocativo “fazer poético”. Duas chagas – um nome estranho para uma obra de autora jovem, que não pode ter vivido, na vida real, as angústias que os poemas contêm – é um livro complexo, que revela um mundo intelectual agitado e revolto e provoca em mim a busca de um significado oculto. Confesso minha perplexidade inicial, que se foi transformando em curiosidade: é normal que jovens ensaiem poesia que reflita sentimentos amorosos ou de inquietude, mas o que Mariana Ianelli faz vai muito além disso. É um questionamento dos homens e do mundo, que seria compreensível se vindo de alguém mais velho, com muito sofrimento e desilusões. Ora, este não é, evidentemente, o caso e daí a surpresa, que, provavelmente, não será só minha.

Seu novo livro, entretanto, é obviamente fruto de talento e sensibilidade, que faz com que muito se possa esperar da trajetória poética e literária de Mariana Ianelli.

José Mindlin



Os que não sabem
matam e suprem com mesmo destino.
Filhos da mentira, amamos porque não.
Alegóricos.
Os olhos e os dedos apressam alguma conciliação
que afaga nossa parte inválida.
Por todo esse tempo formamos o alvo certo
e nos arremessamos em riste,
humanamente, perdidamente.
Histórias justificadas, rompidas, libertas
valem nada se uma palavra esvanecida nos serve.
Decadentes.
Rimos da nossa igual finitude, nos vexamos.
Adoráveis e decadentes.
Nossos poemas possíveis estontearam
na saúde da boca, na cabeça madura.
Pobres autores de nós, que sabemos.

Trajetória de antes_capa

Trajetória de antes

Trajetória de antes, 1999, ed. Iluminuras, São Paulo. Texto de orelha de Ignácio de Loyola Brandão.


Um olhar de pólvora

Estranho mundo cheio de desespero, desencontro, buscas, repleto de sensualidade. Mariana torna sensual cada verso que toca, mesmo no trágico, na angustia, na agonia. Ha nela inocência insana, ironia perplexa diante do abandono (porque as pessoas se abandonam umas as outras), da solidão (esse é o destino e de nada adianta buscar), da nostalgia (de nada adianta rever). Há em Mariana malicia, interrogação, sufoco, olhares hesitantes para um Deus que existe/inexiste, há silêncio, premonições de morte, portas arranhadas em noites molhadas, frutos que não vêm porque não houve germinação.

Textos delicados, porém corrosivos. Mariana conhece o valor de cada palavra, a síntese, ela sabe como transformar a palavra em estilete, cortando fundo. Ela tem o corpo sempre de sobreaviso, ela pode levar nas mãos o momento de pensar. Estão atentos, ela e o seu coração. Ela sabe que podemos ser soltos em um lugar desconhecido da vida. Mariana viaja em estouros de luz, tem o destino dos homens, a missão nos olhos. Revela mulheres santas que recebem os inimigos como se fossem amantes, como se fossem aqueles que chegam pisando a terra e cavam com os dedos o espaço. Mariana olha o escuro, olha os dias e não precisa penetrá-los para viver como quer. Ela fala de mulheres de formas inconclusas, de meias formas, de escamas rastreadas na areia, de guizo silvando nas pedras. Mariana olha com olhar de pólvora a vida, o mundo, o amor. Ela quer um farol na montanha, quer a beleza de semente graúda, espera por mensagens na garrafa, vê o sangue escorrendo das pernas no dia depois do adultério. E ela sente, nos transmite, nos faz sentir a ardência da fogueira estalando gravetos e nos coloca dentro das nuanças de perdição, porque essa é a vida, perdição, ninarias denunciadas, perdas, derrotas, quedas para as quais não estamos preparados, com as pessoas indo para o fundo delas mesmas, em busca de seus próprios vestígios.

E se pensam que essas frases são minhas, não são. Elas foram retiradas de dentro dos textos de Mariana, doloridos, suaves, cortantes, contundentes porque nos revelam em descrenças e desesperanças, com um toque de poesia como há muito não se via, e não se tem visto. E quando pensávamos: onde está a nova poesia brasileira, a que fale de pessoas e sentimentos? a que venha do fundo e não seja puro jogo verbal, visual, armadilhas, mas poesia de sangue e vísceras, aqui está Mariana, corajosamente à beira do ano 2000, buscando a trajetória do antes, enquanto todos querem a trajetória do depois, sem perceber que o depois não existe sem o antes.

Ignácio de Loyola Brandão



Trajetória de antes

Girando na bolha de sal
eu falo contigo e te recebo
no tempo primário
em que me ensinas o amor.
Um passo em falso
me derruba e eu dissipo
mas tu és boa
e me trazes devagar
como quem segura um mundo.
Tua explosão irrompe
tingida de fogo
e dói-te tão fundo
que eu estremeço
e um amor de meses
vaza todo, extravasa.
Desde que me conjugo
(eu sou, eu estou)
dou-te um nome de santa.
Viajo num estouro de luz
que te queima, te arregaça.
Eu tenho o destino dos homens.
Fora de ti, quebrado o pacto,
te encontro uma segunda vez.