Capa Horas Etty

Horas de Etty

Horas de Etty, 2023, ed. Cas’a, Minas Gerais. Texto de orelha de Marcus Reis Pinheiro.

Horas de Etty reúne poemas inspirados no convívio de mais de uma década de Mariana Ianelli com os escritos da holandesa Etty Hillesum. Cada poema cristaliza um momento importante da vida de Etty, que atravessou os anos finais da Segunda Guerra, em Amsterdã, munida de seus diários, além de livros de Rilke e da Bíblia.
Um livro que chama os leitores para o mundo interior dessa mulher que desejava ser poeta e que travou silenciosas batalhas consigo mesma até chegar ao campo de trânsito de Westerbork (norte da Holanda) e dali ser deportada para o Leste no começo de setembro de 1943. Agora em 2023, completam-se 80 anos da morte de Etty em Auschwitz.



Restamos nós dois –
os mestres já passaram, também o desespero.
Não nos socorre nem uma brincadeira.
Se caminhassem agora os pés abririam
a cada passo círculos concêntricos
num espelho de silêncio
(não demorará a acontecer).
Restamos nós dois, a noite inteira pela frente
incorrespondentes com esta época
a paz e seu reino.

Dança no alto da chama 2023

Dança no alto da chama

Dança no alto da chama, 2023, ed. Cousa, Espírito Santo. Texto de orelha de Luci Collin.

“Esse livro é de jorros, de brotamentos e algo também de mistérios e muito também de marulha dos júbilos. É aventura-princípio de nossos ínfimos imensos, dos céus de outros mundos, que sabem a viagens e silêncio contando do que (nos) observa. Entre guardados: meteoritos, ousadias, erupções, fortunas. Entre segredos: brancuras, lodos, cerimônias dos tons proliferados. E o que faz tremer dessagrados e até as águas; e o que sagra a palavra vasta, pintada, úmida, desbragadamente doce a penetrar, a deixar-se estar espessamento e chama. Eis porque toda noite. Eis porque a fruta se prova”.

(Das palavras de Luci Collin)



DANÇA NO ALTO DA CHAMA

Pouco as luzes da cidade nos viram juntas
E jamais as horas de um dia inteiro
Mas sim: já muitas vezes nos viram
A lua de Bashô, a rosa de Hiroshima
Catedrais de flores empíreas e cometas
Sim: já muito nos viu juntas
Um mesmo sonho de firmamento
Sobre os desertos gelados e ventosos do Ártico
Lá onde trabalha Vyacheslav, o homem
Mais solitário nosso amigo, que tem sobre a mesa,
Entre livros, uma foto de Yuri Gagarin
E tantas, tantas vezes nos viu o rés-do-chão
E também a Aldebarã de uma cantiga de Cecília,
E nessa cantiga os olhos de Omar Khayyam
E suas mãos morenas destilando mel da estrela,
Pouco as luzes da cidade e nunca as horas
De um dia inteiro, mas as danças no alto da chama,
Sim, nos viram, nos repiques da noite,
Juntas, nas odes ao fogo, aos fúlmens,
Às frestas incandescentes de todas as coisas
Já uma vez rebentadas, feridas pela vida.

Vida dupla 2022

Vida dupla

Vida dupla, 2022, ed. Peirópolis, São Paulo. Biblioteca Madrinha Lua (curadoria de Ana Elisa Ribeiro). Texto de apresentação de Simone Andrade Neves. Selo Altamente Recomendável FNLIJ.

Neste Vida dupla, Mariana Ianelli faz uma autêntica homenagem a Henriqueta Lisboa, criando uma voz lírica que se conecta com o incomum dos versos e paisagens da poeta mineira. Com fluidez e graça, além de certa devoção, Mariana esconde, na forma e no vocabulário, a matéria-prima emprestada para novos assombros e sobressaltos; amplia e encurta distâncias entre tempo e espaço, o invisível e a imagem que perscruta em outros mundos, num exercício de alteridade e espelhamento entre a poesia e o leitor.



Quinze anos
Tinha rosto de menina
aflorando em moça
tinha o corpo algodoado
no lugar de vísceras
pálpebras guardando nada
e brilhava sua inteireza
ainda agarrada à vida
quem arriscou encarar
a olho nu o sol no eclipse
arriscou queimar a vista.

MORADAS_capa

Moradas

Moradas, 2021, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Texto de orelha de André Seffrin.

Poeta de impulsos simbolistas, nessa que é uma das correntes mais ricas de nossa literatura., Mariana Ianelli, coloca a fábula e o espanto novamente no centro do palco. E sempre foi assim, desde o início, há cerca de duas décadas. Porventura agora parece mais densa em Moradas? Talvez. Saberá o leitor que percorrer seus livros anteriores, quando à luz de epígrafes-guias o poeta se põe em movimento órfico e perquiridor…



Que mundo outro é este que se salva e tão volátil
De céus guardados por olhos que se abriram
E mesmo atrás das pálpebras não se fecham mais?
Que mundo outro brota do nosso mundo maltratado
E o salpica de labaredas e põe luz nas mãos em concha
Como aqueles que têm de si apenas os próprios corpos
E porque se amam veem pilares e torres e festins
Jardins com figos do tempo recém-chegado de cantar
Que mundo outro é esse que se abre neste mundo
Que nos serve a polpa de seus frutos e perfumes
E enquanto continuarem nossos olhos noutros olhos
Continuará a dar de beber em taça cheia sua verdade

capa terra natal

Terra natal

Terra natal, 2021, ed. Cousa, Espírito Santo. Texto de apresentação de Faustino Teixeira. Finalista do prêmio Candango de Literatura (poesia).


OS AMANTES DE WUHAN

Até quando? É a pergunta que nubla
Uma cidade na clausura
Desolada pelo terror de um ar irrespirável.
O comércio foi suspenso.
Os abatedouros aquietaram-se.
Os que ainda se arriscam pelas ruas
Praticam a ciência dos fantasmas.
A espera tem cachos de olhos nas janelas
Mas na casa dos amantes
Todos os olhos já se fecharam.
Nunca foram tão obedientes
Às exortações das autoridades.
Ocupados feito monges
Justificados pela peste
Estão se percorrendo milimetricamente
Pelos poros, por noites encadeadas
Num único dia sem fim, eles estão se amando
E não têm tempo a esperar que o tempo passe.

capa livro américa

América – um poema de amor

América – um poema de amor, 2021, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Bilíngue: português – espanhol. Tradução de Eduardo Langagne. Texto de apresentação de Ramon Nunes Mello. Semifinalista do prêmio Oceanos 2022.

Este Poema de Amor tomou corpo, quero crer, num ‘estado poético’ onde a poeta propôs-se mergulhar, uma espécie de vórtex movido pelo encontro das águas de, ninguém menos, um Amazonas com um Atlântico. Ali onde as palavras ganham carne e sentidos próprios para amantes, estando livres para ecoar nos abismos dos que amam, quando ela diz querer ‘tua parte que morre e fecunda: essa eu quero’, mais valorada esta que suposta parte forte. Em estados poéticos se fabricam poemas de amor, obedientes ‘das deusas da libido’, alcançando momentos de vesânia, como um desvario, onde sussurram mil almas pessoanas, mas mantendo-se a cabeça no lugar. É-se a si mesmo, e também o outro, em movimento caleidoscópico, que não permite pensar-se, ali apenas se é. ‘A gota de fogo, de Octavio Paz’.

‘Somos devorados e para isso viemos’. De fato, a morte da petite mort é efêmera, coisa veríssima, mas ali estarão ainda ‘palavras que se tocam e se acendem’, quando percebemos não além de que ‘somos fagulhas que tonteiam’ e que, onde pisamos ‘há um chão irisado que não é deste planeta’.

Ouse América, livre-anagrama de Mariana. Ouse: ‘somos os amantes’. Poema de poeta orvalhada, poeta de águas, de outros cosmos. É poema-ato-político.    

Paulo Rosa



(…)

É um seio se dando num quintal de abacateiros
É o fumo que chupamos juntos fazendo chama
São as nuvens de um segundo firmamento sobre os cânions
É o teu corpo adolescendo de novo
Doando fogo ao dia e ao faro do cachorro
É a barra de uma saia arrepanhada para as coxas
Um ziguezaguear de lagartixa e o cachorro ladrando louco
É a libação de um jasmineiro e seu perfumado gozo
O sol amarrado à pedra até a terceira hora
A pedra quente como um corpo vivo sob o nosso corpo de criatura
É a manhã sobre as ovelhas como sobre arbustos de lã
É o traço cantado do vento espiralando por gracejo
É o estardalhaço insano das cigarras nas matas
São as borboletas-monarca debruando de âmbar um azul de outubro
São os teus olhos a conversar com os olhos das éguas
Fogo de um lampião de estância onde uma moça lê um livro
Fogo da procissão que arboresce de luz a vila em festa
Fogo latente desses vulcões sobre cidades
Onde o perigo exorta a amar urgentemente (…)

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Canções meninas

Canções meninas, 2019, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Posfácio de Isabel Mendes Ferreira. Ilustrações de Yolanda Ianelli Fernandez.

Sem falar de infâncias feridas ou sequestradas, nelas penso quando vejo uma inocência que ainda pode existir, se deixarmos de estar aí para colonizá-la. Se deixarmos as crianças serem crianças. Se recuarmos nossas pretensas sabedorias e ridículos comandos, para que fale alto esse outro mundo, que não é nosso, embora, com sorte, possa nos ser próximo. Para que cante esse paraíso de anjos implacáveis, que, em suas respostas não verbais ao que nós somos, apenas nos devolvem seus olhos, e neles, gritante, lúcido, o espelho das nossas imagens.

As alegrias roubadas cedo, brilhassem como merecem, haveriam de juntar-se a essas canções. Nesse país sem muros de meninos e meninas, somos nós que devemos guardar silêncio, ouvir, observar. O começo de um poema está ali, no existir dessas crianças, em suas fantásticas analogias, no rebentar instantâneo da alegria por coisas tão pequenas, que de repente assumem as dimensões de um mundo novo. Inalienável mundo, insubornável mundo, onde as palavras ainda precisam ser descobertas, pois vive-se antes de outras (muitas) linguagens.

Nesse lugar, que ainda pode se abrir em qualquer parte, se assim nós permitirmos, nessa idade que refresca tudo o que toca, não vale a lei dos homens. Aí respira uma inocência como uma segunda chance que nos foi dada. Terceira chance, quarta chance, e como nós respondemos a essa oferta? Correspondemos alguma vez a essa dádiva?

M.I.



Uma inocência veio viver comigo e não é minha,
Rainha dos cataventos vivos antes da chuva
Amiga dos brotos de hibisco, amiga das pedras
Amiga dos gatos pretos que vivem nos muros,
Esse olá para tudo veio viver comigo e não é meu,
Esse dedo apontado para a lua, esse dedo apontado
Para tudo que é da messe do amor. Eu cuido.

capa manuscrito

Manuscrito do fogo

Manuscrito do fogo (antologia poética), 2019, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Texto de apresentação de Peron Rios.


FAZER FOGO

Que sei eu da tua vida feita de milhões de instantes?
De tuas monstruosidades, tuas taras, teus dramas?
Que sei eu dos teus contrabandos no caminho até agora?
Se nem sei teu nome e as palavras de um pós-guerra
São como pedras que precisamos atritar para dar fogo…
Não é mau que o cenário seja pobre e antes uma questão
De sobrevivência fazer fogo: isso aproxima estranhos, dispensa
Cerimônia, protela a discórdia e nos chama a certos gestos
De linguagem universal, rosto de dor, corpo com sono, sede,
Medo, fome, e então se tocam a tua loucura, a minha sanha,
O meu desejo e o teu desejo, acordados, então queimamos,
E queimamos bem, como se assim fizéssemos juntos a vida toda.

Capa rosto Tempo de voltar_

Tempo de voltar

Tempo de voltar, 2016, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Texto de orelha de Maria Lúcia Dal Farra e prefácio de Marco Lucchesi. Finalista do prêmio Jabuti 2017.


Mariana tem compromisso com a terra e o centro, um regressus ad uterum, ao elemento primordial, onde não há fronteira entre o sono e a vigília. Porque no princípio era a música: dentro dela nos movemos, agimos e estamos.  E a volta não acaba. Processo que se abisma em suas entranhas, assim como a bela poesia de Mariana, igualmente abismada: água clara de poço profundo, clara e fresca. O lençol freático de sua poesia nos dessedenta, inesgotável. Comove. E arrebata.

Marco Lucchesi


ISMAEL

Todas essas terras disputadas,
uma vida de alcateia e de cobiça –
mas nem todos nós temos essa fome.
Alguém tem apenas o deserto
de uma história que nunca foi escrita,
a saga sem metáfora de glória
de ciganos tão antigos quanto estrelas –
ao menos um de nós é o outro filho,
o andarilho irmão que foi banido,
e outra vida vem do fundo de um poço,
uma flecha cruza um mundo sem divisas.

capa o amor e depois

O amor e depois

O amor e depois, 2012, ed. Iluminuras, São Paulo. Texto de orelha de Adriana Lisboa e posfácio de Contador Borges. Semifinalista do prêmio Portugal Telecom de Literatura 2013 (poesia), finalista do prêmio Jabuti (poesia) 2013.

Conheci a poesia de Mariana Ianelli através de seu livro Fazer silêncio, cujo título já de saída me conquistou: essa exortação, num mundo extrovertido, um mundo compulsivamente loquaz e de ruído em excesso, parece mais do que atrevida: é revolucionária, talvez. Será possível, então, uma espécie de escrita silenciosa? Esta jovem poeta de mão segura confirma que sim. O silêncio está muitas vezes atrelado a uma frequência íntima de reflexão, de contemplação, de espera e temperança, qualidades que encontrei na poesia de Mariana. Uma poesia que não sobra, que não vaza, nem mesmo quando deslumbra.

Na primeira oportunidade me lancei a seus outros livros já publicados, até ter o privilégio de ler os originais de O amor e depois. Encontrei aqui o mesmo cuidado com as palavras que, como disse Jair Ferreira dos Santos, “é severo, mas não exclui, antes reforça a espontaneidade.” Uma “dicção ao mesmo tempo culta, comovente e perturbadora,” como quis ainda Antonio Carlos Secchin.

A língua é companheira de Mariana, é um instrumento que ela usa com a habilidade dos mestres. E como todo mestre, ela renova sua arte. Seus versos, que passam longe do exibicionismo formal e são antes o peneirar do ouro no rio, trazem imagens como o halo de majestade / dos tigres à beira da extinção, no belíssimo Tigres brancos, ou confirmam: O amor, até o amor existe, / Um lunático mendicante que vadia pela terra / À espera de outra chance (Miragem).

Mas ela é uma artesã cuja poesia nunca revela a costura. O domínio incomum que Mariana tem da escrita nos faz acreditar que, afinal, não há esforço no esforço que seguramente empenhou ali. E o tempo todo sua poesia silenciosa, mas possante como poucas na cena contemporânea exorta que nossos olhos estejam vivos e curiosos (…) / E olhem para dentro alguma vez / E o que vejam / Seja alguma força de sequóia / Presa à terra desde o império de outros tempos (Os teus olhos).

Estaremos à altura da tarefa? Aí está o desafio lançado por Mariana Ianelli. A satisfação que foi para mim a descoberta de sua obra, há alguns anos, vem agora se aliar à alegria de reencontrá-la neste O amor e depois, sempre surpreendente, e absoluta senhora do seu ofício.

Não me restam dúvidas de que estes versos vazados pela temática do amor (e do seu fim, e do que vem depois) – mas não apenas isto – exigem que eu seja uma leitora competente, de olhos e ouvidos atentos. Mas só tenho a ganhar com isso.

Pois, como lembra o poeta e editor americano Christian Wiman, acercamo-nos da poesia “para poder habitar de modo mais completo nossas vidas e o mundo em que as vivemos – e para que, sendo capazes de habitá-los mais integralmente, sejamos talvez menos aptos a destruí-los”.

Adriana Lisboa



O AMOR E DEPOIS

Era esperado que aos poucos
Definhasse, fosse desaparecendo
Naturalmente levado pelo sono.
Era suposto que por abandono
Morresse –
E não teria o vento nenhum sentido
De ventura, seria apenas
A passagem de uma hora branca,
Entre outras tantas,
Para um coração manso
Que já nada espera nem recorda –
Como se o tempo não devorasse
Também o desconsolo
E dele fizesse exsudar um leve perfume,
Como se não arrastasse
Cada corpo uma penumbra,
Como se fosse possível
Em vida a paz dos mortos.