PÓS-ESCRITO

Preamar dos ventos
Mirante o mais distante de casa
Desdobrável é a noite
Exausto o desespero

Céu de chumbo
Invisível lua cheia
Impossível sutileza do dilúvio
A noite é mãe de tudo, mãe de tudo

Andorinhas, rosas altas e relâmpagos
Quem os inscreveu aqui foi ninguém –
Antes e depois é a noite
E o coração, um assassino lento.

 


 

LEMBRAR FARÁ ARDER A BRASA

Terá sido
O mais sufocante verão
Desde décadas
O inverno mais severo
Pouco importa:

Lembrar fará arder a brasa
E os meandros
Serão desses de fumo
Que mal se desenham no ar
Se desfazem.

A mão pensativa
Não mentirá sobriedade
Dançará
Um nome fulvo sobre o papel
Um céu sem nuvens

Dançará esta mão
Menina insolente
Sem quem lhe veja
As pontas dos dedos
Alcatroadas de solidão.

 


 

SOBRE ESCURAS ÁGUAS

Hoje a doença de novo me acomete
Saio à porta
Só para ver a lua
Estou a ponto de encontrar beleza
Em situações as mais impróprias.

Um sonho me subjuga
Em calidez de lamparina de papel
Na madrugada
Boiando sobre escuras águas
Sem chegar a olho algum.

Boiando, dançando, alucinando
E amanhã carrego o rastro do cansaço
De manter silêncio
E sem que alguém perceba
Estou mancando de uma coxa.

 


 

VEM QUE TE QUERO MOSTRAR COMO VIVO

Não apenas de caça, tocaia e crueza
Se fazem tigres e lobos

Se pudesses ouvir este segredo
(Este segredo de monge)
Uma mecha de fogo
Ondularia no limiar da verdade.

Não nos perde – me ouves? –
Não nos perde
Um lar promíscuo de feras
E coisas santas.

Moro entre elas, sou como um elo:
Assim minhas noites.

Vem que te quero mostrar como vivo
Enquanto quase todos dormem.
Há tigres e lobos em santuários
E eles comem das nossas mãos.

 


 

POR QUÊ?

O vento do deserto esta noite estupra os meus ouvidos.

Se pelo menos me dissessem palavras terríveis
E por elas fosse arremessada para esse mesmo deserto
Eu agradeceria.
Receberia sem desgosto esse vento
Divisaria o caminho lendo estrelas
Como fazem os que perderam o luxo de desistir.

Mas não: me trouxeram até aqui com infinita gentileza.
Franquearam-me o deserto como um presente.

Ontem – ainda quase ao meu alcance –
Uma voz me falava tão docemente.

Por que por que por que não me disseram palavras terríveis?

 

Revista Acrobata

PASSO DO ADEUS*

O passo do adeus
É essa dança difícil de cumprir sem revolta
Dança, dança a velha casa
Cumprindo ser sólida
Mesmo já morto seu coração
Dança, dança a manhã que não se nega
A lançar-se pela porta aberta
Varando a dureza do estupor
Ultrapassa nosso desejo esse passo
E o redescobre
Se o adeus vem sem escolha
Dançá-lo vem do ardor

Cada estilhaço, cada lasca
Cada concha vazia levita
E as coisas antes tão agarradas
Vão subindo
Em gigantesco tornado
Reunindo o desatado
Num giro tonto de noites
Dançam estratos doutros tempos
Cartas, estradas suspensas
Dançam pedras de um templo
Palavras sem os seus ensejos
Dançam nossos nomes desfeitos

Qual testemunho, qual escritura
Quais águas ressuscitadas
Depois de tudo
Reconstituem a alma da história?
História que era e respirava
Com seus alvéolos expandidos
Mal se sabendo
Embora toda a ciência e tanta vida
História que se fazia
De insondáveis geometrias
Que se encorpava por mistério
Mais que por mãos que intentam obras

Era a noite de tocaia
Eram a noite e sua entranhada participação
Na púrpura dos frutos
Era o mel elaborado sem alarde
Em jardins que ninguém vê
Como se entrosam no escuro
Era a noite cobrindo tudo
Entre dois dias
Esse nunca saber quanto tempo ainda
Era a noite imensurável
Mar
Entre dobras macias

Hora grave, hora fátua
Horas de vigília
Horas de toda sorte
Subindo
Quem bem acaba, tudo dança
Na flor do apocalipse
Caminhos verdes bem podados
Encruzilhadas terríveis
Anos de sonhos intermitentes
Em inédito poema
Esvoaçam
As páginas misturadas dos nossos livros

Adeus, esplendores de vidro
Horas desoladas
Estigmas dos equívocos
Adeus, tempo contado
Tratos e distratos
Diligência e menoscabo
Magníficos desperdícios
Adeus, necessidade
Vanidades espelhadas
Desastres entre sala e quarto
Adeus, instrumental dos ritos
Adeus, corpo conhecido

Colosso de nuvem espiralada
Que gira
Todo o montante de coisas havidas
E perdidas
Gira, altamente gira
Sobrepuja o repouso das coisas últimas
O não haver mais tempo e os fragmentos
Sobrepuja o lamento
Gira vórtice, gira noite
Flor que sobe celebrante
Em antese de milhões de instantes
Neste instante

Um pouco nos eleva
Essa dança
A despeito de nós mesmos
Essa dignidade de olhos ígneos para a despedida
Dança de estrelas reavidas
Passarada das eras
Nossos refugos de afeto
Todos cumulados
Num só corpo de ar que turbilhona
Não faltar à hora
Não voltar as costas a essa flor de vórtice
Um pouco nos assoma

Era a noite que tudo via
E acobertava
A noite aquela que descia
E exortava a falar baixo
Era a chama bailando sua ponta de fogo acutilada
A noite aquela represada entre dois dias
Como se a escuridão pudesse ser dosada
A noite que tudo sabia
E nos tinha em suas dobras
Aquela que nos recolhia sob o pano
E agora desmesurada
Sobe

Adeus, engenhos do apego
Caminhos de volta, órbita querida
Adeus, tarefa das tramas
Olhos correspondendo-se
Noites entre barragens
Adeus, sorte pretendida
Pequeno cosmo edificado
Abóbada acesa por dentro
Adeus, nome adorado
Paredes imundas de símbolos
Nada nos despoja mais
Que a violência da vida

O que bem acaba, dança
E o vivido revisto em remoinho
É outra vida
Todas as páginas soltas
Ganhando altura e giro
São outros livros
O que se ocultava, adeja
O que era grave, ri
Dança maviosa a letra antes aflita
Dança marinho o azul celeste
Brilha o reverso dos propósitos
Brilha a face inexplícita

Uma vez mais
Encontro tua mão, que não se esquiva
Uma vez mais
É a hora difusa em que a casa se regozija
É nossa dança final nublada de instantes
Confusos entre a noite e o dia
Gorjeiam pássaros
No cálice dos ventos erguidos
Não há morte que separe
O que se consuma nesse giro
Uma vez mais
Te sorrio.

(2023)

*-*-*

  • “Passo do adeus” foi escrito para o projeto “Música Pura”, concebido por Flávio Stein, especialmente para a suíte 2 de J. S. Bach, cuja apresentação na flauta doce, acordeon e marimba aconteceu no auditório do Instituto Goethe de Curitiba nas noites de 5 e 6 de outubro de 2023.

 

1.

De que corpo é essa palavra que transmigra, de que feixe maduro de tempos essa dança, que levanta o pó na cintilação da poalha, de quanta pedra enovelada em fio de pérola, de quanta guerra parindo o seu contrário?

2.

A certa altura da noite, vindos de algum exílio, damos nesta ilha que nos põe a dizer coisas que raramente diríamos à luz do dia. Quem nos tornamos nesta hora, que somos tão próximos e não nos vemos? E no que se torna a palavra que não evola, como aquelas que só dizemos em momentos extremos?

3.

Quem ousa o grito que acorda os cães da noite alta? O escuro remoinha, o escuro se encapela, o escuro vai cobrir tudo com seu mar. Estonteado grito, agora percebes? Sempre mais temível é a noite, que te confunde com os cães, depois te encobre.

4.

Hoje me atravessa uma imagem do futuro como uma andorinha extraviada. Um céu sem lua e eu estou uma criatura dócil, de amadurecida humildade. Amanhã, amanhã as andorinhas virão cedo, virão rápidas, eu estarei de novo cega, e toda mansuetude será remota como um sonho deslembrado. 

5.

Sobreviveu ao dia e agora se assanha, vício que mata, e eu agarro, eu quero, erro com gosto, me mato, todas as noites me mato, transfundo-me para isto que é nada, isto que será nada, petrificado no tempo, até que o tempo novamente o invada e outra vida dê de beber a esta sede drácula, e sim: eu creio nas águas ressuscitadas, sim: eu creio no fogo.

6.

Braços tão elásticos que teu corpo tem para os ventos! Como se te fizessem tremer de anseio pela chuva, e ela vem, ela desaba sobre teus galhos reverentes, bátega de verão, exorbitância de dar mais que o necessário, mais que o feraz e o copioso, exorbitância de dar até o desbordo da morte, mas não, teu corpo de árvore não morre, afoga-se e não morre, embora enraizado é um corpo que chacoalha, se descabela, não para. Talvez tivesses pena de mim, pena do amor suficiente que alguém me tem quando pede que eu me agasalhe. Vejo da janela tua ramada, que dança à altura da vida, e tua vida faz que me ignora.

7.

Aqui é um céu desmesurado. Tudo ele toma para si, as rotas dos aviões, os diferentes tipos de nuvens, as ambiciosas pipas de beira de estrada, tudo. É um céu que nos cega para os horizontes com o acortinado leitoso das chuvas das tardes de verão, um céu que nos oculta as constelações sobre a névoa de luzes da estrada. Esta noite, vinte e seis estrelas furam a abóbada de névoa com seu brilho, e que pareçam solitárias e dispersas no céu, é só uma miragem dos nossos holofotes. Seria preciso que a estrada se apagasse toda, e as casas, e os prédios à margem dela. Que se fizesse outra noite dentro desta. Então seria um céu de estremecer. Um céu de fechar todos os nossos livros. Uma calota de negrume em fogo. O mais antigo ardor dentro da escuridão mais antiga. 

8.

A estrada hoje está que até os caminhões parecem leves. O que levará a rodar, a esta hora, esses que viajam enquanto um mar de gente dorme? Que urgência, que paixão? Somos todos contrabandistas, colegas na recusa do repouso, de sentinela com nossas lâmpadas amarelas, nós, estes animais noturnos, estes seres de poema antecipadamente cúmplices nesse chiado de velocidade acelerada na estrada feito água de enxurrada sob veladura, nessa letra apressada também, ansiosa por ultrapassar as coisas últimas, e por quê? Por que urgência, por que paixão?

9.

Antese no jardim depois das chuvas. Brilham dez gotas guardadas nos debruns da rosa mais empinada. Quem te culpa é quem te abusa, agarrado em teus espinhos. Que te chamem de indecente, alto desperdício. São as chuvas entre sóis que te excitam. São as noites que te abrem.

10.

Pequeno esplendor através das janelas, dedos impregnados de mirra, sino fundador das moradas, temos quanto tempo ainda?

11.

A noite me possua como faz a esse jardim, que ninguém vê como vive no vento frio, como engorda o fruto da romã pensativamente, pois que se me entranhe esse tempo como faz a esse fruto, eu me desvisto, eu me desarmo, dou-me ao vento fresco, e ninguém que venha sedento saberá a lenta e funda lavoura de elaboração da doçura.

12.

Viver com os vultos do exílio, os animais amantes, as almas assassinas, viver com os de secretíssimos transes, os cativos dos labirintos, os errados, os errantes, os sozinhos, ter com os cegos, os mortos, os de longe, os caídos em toda a sorte de escuro, poço, tugúrio, horto, estar ali e ali dar seu timbre ao corpo dum misterioso idioma, viver essa segunda vida, onde não se é visto, preparar o surgimento de um rosto.

13.

De que valem os ventos esta madrugada? Hoje não farejaremos sendas nem expediremos cantos a longa distância. Alcançaremos doer como mestres e nos libertaremos das palavras.

 

Revista InComunidade