Fazer silêncio_2005

Fazer silêncio

Fazer silêncio, 2005, ed. Iluminuras, São Paulo. Texto de apresentação de José Castello. Finalista dos prêmios Jabuti (poesia) 2006 e Bravo! Prime de Cultura.


Mariana Ianelli produz silêncio no leitor. Um silêncio que é cumplicidade e empatia, a identificação de uma memória em comum.

A escritora refaz o passado com o refinamento de uma profecia, cria uma “arqueologia sagrada” de seus hábitos, desaloja verdades das aparências. Em sua poética singular e febril, cuidadosa e alentada, não há desperdício. Descobre o “rumor do oceano / no fundo de uma vasilha”.

Não existe propriamente o passado, o presente e o futuro, mas aparições, fulgurâncias de uma compreensão simultânea dos tempos. “Não há tempo que me fortaleça / Sem antes ter me derrubado.” Seu olhar é de cima, como do alto de uma árvore, dos telhados, das costas de um anjo. Ela ensina a arte de perdoar, entende as imperfeições que pesam, problematizam e enriquecem a vida. “De todas as paixões do mundo / Resta-nos o dom de saber perde-las. “Não condena o sofrimento com castigos, culpas e maldições. O sofrimento é sábio e transmuda-se na alegria do autoconhecimento. Não pune; abençoa com a partilha. Para cada aflição, indica uma receita curativa. Ao desespero, sugere “o consolo num copo de cidra”.

São poemas para a moldura da voz. Mariana tem uma vocação classicista para lapidar a dúvida em diamante. O adjetivo é bem colocado, os paradoxos são necessários e os versos se perfazem em paralelismos bíblicos. Persegue a justiça e o equilíbrio da forma. Assim como Sophia de Mello Andresen e Maria Teresa Horta, grandes autoras de Portugal, condensa o raro em instantes de deslumbramento, descarna o mínimo com acurada intensidade, ultrapassa a vagueza pelo simbólico e adere ao território mágico das evidências.

Se no outro lado “a eternidade é leve”, aqui, neste livro, a escrita ajuda a passagem da brasa ao cristal, do animal ao espírito, do prosaico ao sacro. Dificilmente a poeta fala por si, na primeira pessoa. Recusa a catarse existencialista ou os achaques domésticos, fala com os outros (nunca pelos outros), em conjugação coletiva. “Gozamos um amor tranquilo, sem heroísmo.” Sua mitopoética tem um andar místico e concentrado, a retirar visões sobrenaturais de banais conjunções dos fatos. “Vês aquela menina? / Alheio à sorte, não podes vê-la: / Falta-te o conhecimento do oculto: / Essa criança será tua mulher daqui a vinte anos.” Supera a indigência da força física a subir como perfumada fumaça dos círios e da flor oracular do fogo. Não são apenas poemas, são promessas de uma mulher que entendeu a solidão para conviver, que sonhou para contar, que viveu para não morrer a esmo.

 Fabrício Carpinejar, poeta



Seja o ar da montanha
Para o sono dos cordeiros.
Neve recém-caída,
Puríssimo grão de açúcar,
Duna sob a lua cheia.
Tal qual o fruto da terra
Que se dá a comer no sexto dia.
Jazida inexplorada,
Casa sem mobília,
Vácuo do não-dito,
Êxtase nunca interrompido.
Tal como o olho cego
Que percebe o invisível,
Gema de opalina.
Seja o restante, o indiviso.
Magma transmudado em cinza,
Fóssil na noite da cripta,
O vaivém milenar da água-viva,
Líquido momento de sentir
E estar sozinho.
Fazer silêncio.

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