- Em “Turno da Madrugada”, podemos observar um retrato das variações de cor e atmosfera da nossa época. O livro aborda temas como notícias de casa, do Brasil e do mundo, datas comemorativas e memórias afetivas. Como você equilibra esses elementos na construção das crônicas?
A antologia traz crônicas bem variadas, é bem esse o espírito do livro, essa mistura de matizes de notícias de casa e do mundo, às vezes pendendo mais para o metafórico e o poético, às vezes num texto mais substancioso de informação, isso depende do momento, da circunstância ou da data. O cronista tem esse olho vigilante que vai acompanhando as notícias, o “ar da época”, e faz uso disso de um modo muito pessoal, então sempre, necessariamente, a crônica me dá essa liberdade de transitar entre fato e fábula, sonho e realidade, que é um espaço intermédio onde me sinto à vontade para tocar em qualquer assunto, porque justamente aí não há fronteiras nem contornos claros, as coisas se imiscuem, como acontece na vida. Esse equilíbrio, digamos, vem no trato mais espontâneo do assunto, o que não quer dizer que não haja ali também um arte fazer, um trabalho com o ritmo e como encadeamento do texto.
- Como surgiu a ideia de compilar a antologia “Turno da Madrugada” e selecionar crônicas publicadas entre 2010 e 2022?
Trabalhei na seleção de crônicas para esse livro ao longo do ano passado, quando tirei férias da revista Rubem e do site do jornal Rascunho, para onde colaboro mensalmente (na Rubem, de quinze em quinze dias, no Rascunho, todo último sábado do mês). A ideia era justamente reunir o material de quatro livros num volume só, ampliando o arco de tempo, que antes era de dois a quatro anos por livro. Nesse arco de doze anos, também a leitura ganha nova perspectiva, vemos como determinados assuntos retornam, como continuam vivos depois de mais de uma década, ou como interagem crônicas de diferentes tempos agora reunidas num todo.
“Acho que o coração de poeta
está sempre ali, vai junto com o
olho de cronista, recebe o que
esse olho vê e responde a isso.”
“Às vezes basta uma palavra
para dar a faísca de uma crônica,
palavras saborosas, palavras raras.”
“Gosto dessa condição ordinária, ou
bastarda, da crônica, que é também
uma condição de humildade, capaz de
circular por diversos âmbitos sem
pertencer a nenhum deles.”
- Os seus quatro livros anteriores de crônicas influenciaram a seleção para “Turno da Madrugada”?
Sim, “Turno da madrugada” reúne crônicas selecionadas desses quatro livros anteriores: “Breve anotações sobre um tigre” (2013), “Entre imagens para guardar” (2017), “Dia de amar a casa” (2020) e “Prazer de miragem” (2022). De cada livro selecionei textos com “motes” variados, que afinal é da natureza da crônica, essa variedade, essa “não especialidade em nada”. Nessa mistura, também os motes de crônica dos diferentes livros se conversam, por exemplo, crônicas sobre artistas plásticos ou escritores, sobre amizade e solidão, sobre horrores coletivos como o rompimento das barragens em Minas ou o armamento da população, sobre memória e esquecimento, tudo a partir de um olhar pessoal, de como esses assuntos me atravessam intimamente. Mantive as datas originais de publicação de cada texto, que também são informativas, em ordem cronológica. Nas crônicas de 2017 em diante entra o assunto da infância e da maternidade com mais frequência, pela chegada da minha filha (nascida em 2016), o que para mim significou um engajamento mais epidérmico nas questões do país e do mundo, porque os primeiros anos de vida da Yolanda coincidiram com os anos infernais de golpe, pandemia e desgoverno no Brasil, o que inevitavelmente me levou a abordar na crônica, agora com olhar de mãe (e também de poeta cúmplice das crianças), essa absurda coexistência de uma infância que sonha dentro de um pesadelo reinante.
- Qual é a importância do sábado na sua visão como cronista, considerando que todas as crônicas foram originalmente publicadas nesse dia?
Sua pergunta me traz de volta a primeira crônica que publiquei, ainda no site Vida Breve, em 2010, falando justamente sobre esse sentido do sábado, que vejo como uma ocasião de sombra para uma parada reflexiva. Essa crônica, que se chama “Meu sábado é o silêncio de um retrato”, acabou não entrando na seleção da antologia, porque evitei incluir na antologia as crônicas com histórias de família, mas foi justamente a partir de uma história de família (um retrato de minha mãe quando criança, pintado por meu avô) que encontrei uma metáfora desse sábado para a crônica, assim de um ponto de vista pessoal. Esse retrato, de uma menina de perfil, com rosto penso e olhos fechados, que é uma imagem de minha mãe com seis anos de idade, representa para mim a figuração dessa parada reflexiva, desse componente de sombra do nosso dia a dia, que aos sábados fica mais visível, mais palpável.
- A orelha de “Turno da Madrugada” foi escrita pela escritora baiana Kátia Borges. Como você caracterizaria o “sabor agridoce” que Kátia atribui à sua escrita?
Como é bom ter esse olhar da Kátia Borges, cronista e poeta que leio sempre e adoro! Esse sabor agridoce, da maneira como eu
sinto, tem a ver com aquela coexistência de horror e maravilha em que nos vemos metidos tantas vezes nas nossas vidas cotidianas. Essa mistura aparece nas crônicas em doses e composições variadas, pode ser uma indignação em registro poético, pode ser uma dor enleada a uma ternura, pode ser uma ironia traída na sua inteligência por uma paixão. Misturas assim, sempre muito humanas, matizadas, dão nesse gosto agridoce.
- O livro destaca um olhar para as nuances dos acontecimentos, ambivalências e contradições humanas. Como você aborda esses aspectos na escrita das suas crônicas?
Ponho em ação o que é ambíguo, o que é contraditório, porque, se há um espaço em que isso é sempre bem-vindo, é a crônica, que não está ali para teorizar nem discursar nem pretender coerência ou lição de moral. Embora nossos famosos sabiás da crônica da metade do século passado usassem gravata, a crônica é o espaço de estarmos “desengravatados”, à vontade com o que somos, naquilo que dizemos, tratando o texto à maneira com que nos afetam os fatos da vida e do mundo. Que subam as ambivalências, que dancem ali no texto, e nos apequenem se for o caso. O provérbio não existe, e talvez não seja feito para o gosto popular, mas do meu ponto de vista como cronista acho ótimo poder dizer, como se provérbio fosse, que quanto mais a gente vive, menos a gente julga. É bem aí no meio das coisas mosqueadas que um cronista escreve, no meio da baralhada indistinta de informações diárias, num emaranhado também de emoções, disso tirando um dedinho de prosa que é despretensioso por natureza e, na sua despretensão mesma, goza da liberdade de dançar com as ambivalências da palavra e da vida. Essa dança, como eu vejo, envolve franqueza e paixão.
- Como a sua formação como mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP influencia a sua abordagem na escrita de crônicas?
No mestrado me dediquei ao projeto teórico “Poesia-Experiência” do piauiense Mário Faustino, era outra seara, digamos assim, ainda que Faustino tenha levado esse projeto para as páginas do jornal (JB). O que me influenciou de fato, ou me inspirou, ou me alimentou, foram sempre as leituras entre quatro paredes, por vontade própria. Dizem que a crônica é um gênero vira-lata, não? Aquele caramelo que entra na igreja sem a menor cerimônia, que vai lá até o altar e de repente, simplesmente, para riso geral, se aboleta na batina do padre. Não é convidado de honra, nem é exatamente um intruso… é o que transita de cá pra lá rompendo com solenidades por sua própria existência. Gosto dessa condição ordinária, ou bastarda, da crônica, que é também uma condição de humildade, capaz de circular por diversos âmbitos sem pertencer a nenhum deles.
- Ao longo dos doze anos de crônicas em “Turno da Madrugada”, como você percebe a evolução do seu estilo e da sua voz como cronista?
Percebo um desembaraço maior de lá para cá, o que talvez seja fruto do tempo de prática, simplesmente. Tem também o fator vida, as experiências ao longo desses anos, perdas e ganhos pessoais, que não são apenas repertório de assunto para a crônica, são também o que temperam voz, estilo, modo de ver. Percebo também interesses que vão se acrescentando, como o da maternidade e o da infância, a partir de 2016, ou o exercício da indignação diária, sobretudo entre 2019 e 2022. Mas, na antologia que abrange esses doze anos, não vejo uma diferença de voz entre as crônicas mais antigas e as mais recentes, acho que essa “evolução” é interna, uma disposição mais “oleada” para a escrita.
- Quais são as suas maiores fontes de inspiração ao escrever crônicas, seja em termos de autores que admira ou de experiências pessoais?
Os cronistas que mais me alimentam foram também poetas: Cecília Meireles, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes, Hilda Hilst. Às vezes basta uma palavra para dar a faísca de uma crônica, palavras saborosas, palavras raras, também parábolas e provérbios, gosto de levá-los para o texto e ficar ali matutando neles, assim, poeticamente. Gosto sempre da noite ou da biblioteca como assunto, dos gatos, das crianças, do bosque da Aclimação, tudo isso que faz parte dos meus dias ou das minhas madrugadas, o interesse pela pintura, memórias de leitura, histórias de família.
- Como a sua experiência como cronista se conecta com a sua vivência como poeta? Essas duas formas de expressão se complementam de alguma maneira?
Acho que o coração de poeta está sempre ali, vai junto com o olho de cronista, recebe o que esse olho vê e responde a isso. Às vezes o ritmo desse coração é bem audível e marca o ritmo do texto, e então vem a crônica que é também prosa poética, em geral sem abertura de parágrafo, num fôlego só. E às vezes ele vibra discretamente, numa crônica em tom de conversa. De qualquer maneira esse coração de poeta está sempre ali. A crônica também é um ensejo de enredo e carnadura para toda poética, e cada cronista, cada poeta, cada escritor, tem sua poética. Mas a crônica não teoriza, não perora, não postula, é só aquele fulgor possível, aquela poesia mínima posta à prova no ramerrão da nossa rotina diária, o que eu acho maravilhosamente desafiador, em termos de despojamento, para quem quer que escreva. É o desafio da clareza e da carnadura das coisas, não importa o assunto ou a matéria escura dele, o desafio de um escritor “ir se escrevendo” ao vivo, o mais honestamente possível.
- O que o título “Turno da Madrugada” representa para você, não apenas como parte da antologia, mas como uma metáfora para a sua visão da vida e da escrita cronística?
Esse título foi escolhido para a antologia justamente por essa metáfora de um posto vigilante, durante a madrugada, que tem algo de anjo nesse intervalo entre um dia e outro em que as pessoas geralmente dormem (daí inclusive a imagem do lustre de anjo na capa da antologia, fotografia aqui da minha biblioteca). Esse algo de anjo tem parte com aquele coração de poeta que também não dorme, que está ali para outrem, coração na escuta. Turno da madrugada também como um turno de sombra, um intermédio de silêncio, espaço de bastidor. Todas as crônicas foram escritas nesse turno, dentro desse silêncio telepático da meia-noite às cinco, então posso me dizer uma cronista da madrugada.
- Na construção das crônicas, como você decide qual aspecto da vida abordar e como criar uma narrativa que ressoe com os leitores?
A escolha do que abordar vem em boa parte de “estar ao corrente” (não é assim que se dizia antigamente?), atento e “farejante” como um bom leitor dos dias, seja do nosso pedaço de bairro, seja das notícias do mundo. Isso inclusive permite que um cronista trate de um assunto já consabido de maneira metafórica sem maiores explicações, algo que gosto muito de fazer. Sobre como criar, como dizer, isso vem daquele acento próprio, daquele estar à vontade, todo ali, numa prosa apenas trabalhada para ser solta, calorosa, íntima.
- Qual o seu livro de cabeceira e qual será sua próxima leitura?
Um livro que não sobe para estante, aqui, é O episódio humano, uma reunião de textos em prosa de Cecília Meireles (originalmente publicados em jornal) entre 1929 e 1930. Minha próxima leitura será Nó de víboras, de François Mauriac, na recente edição brasileira pela José Olympio.