Canções meninas, 2019, ed. Ardotempo, Porto Alegre. Posfácio de Isabel Mendes Ferreira. Ilustrações de Yolanda Ianelli Fernandez.
Sem falar de infâncias feridas ou sequestradas, nelas penso quando vejo uma inocência que ainda pode existir, se deixarmos de estar aí para colonizá-la. Se deixarmos as crianças serem crianças. Se recuarmos nossas pretensas sabedorias e ridículos comandos, para que fale alto esse outro mundo, que não é nosso, embora, com sorte, possa nos ser próximo. Para que cante esse paraíso de anjos implacáveis, que, em suas respostas não verbais ao que nós somos, apenas nos devolvem seus olhos, e neles, gritante, lúcido, o espelho das nossas imagens.
As alegrias roubadas cedo, brilhassem como merecem, haveriam de juntar-se a essas canções. Nesse país sem muros de meninos e meninas, somos nós que devemos guardar silêncio, ouvir, observar. O começo de um poema está ali, no existir dessas crianças, em suas fantásticas analogias, no rebentar instantâneo da alegria por coisas tão pequenas, que de repente assumem as dimensões de um mundo novo. Inalienável mundo, insubornável mundo, onde as palavras ainda precisam ser descobertas, pois vive-se antes de outras (muitas) linguagens.
Nesse lugar, que ainda pode se abrir em qualquer parte, se assim nós permitirmos, nessa idade que refresca tudo o que toca, não vale a lei dos homens. Aí respira uma inocência como uma segunda chance que nos foi dada. Terceira chance, quarta chance, e como nós respondemos a essa oferta? Correspondemos alguma vez a essa dádiva?
M.I.
Uma inocência veio viver comigo e não é minha,
Rainha dos cataventos vivos antes da chuva
Amiga dos brotos de hibisco, amiga das pedras
Amiga dos gatos pretos que vivem nos muros,
Esse olá para tudo veio viver comigo e não é meu,
Esse dedo apontado para a lua, esse dedo apontado
Para tudo que é da messe do amor. Eu cuido.